A cidade(?) jardim

As tentativas clássicas de apreensão deste novo fenómeno urbano que são as cidades industriais assentaram na dicotomia matricial rural-urbano. Não se trata apenas de uma oposição entre número de habitantes, de densidade populacional, de economia, mas também de uma dicotomia social, política e cultural. As cidades não são apenas conglomerados de pessoas que exercem uma actividade económica que não a agrícola, são também o contexto onde se dão mutações sociais decisivas e onde emergem novas políticas com novos protagonistas e diferentes formas de expressão e representação cultural. As cidades são o habitat do cidadão e ser cidadão significa participar num quadro de regras formalizadas que configuram a relação entre os indivíduos e as instituições, ou seja, o alcance das acções individuais não se limitam mais ao espaço finito da terra e da família, passando a inscreverem-se num plano abstracto – e, por isso, potencialmente infinito – de relações económicas entre indivíduos.

Todavia, Ebenezer Howard vê a cidade industrial como um excesso de cidade que aliena os indivíduos. É com os olhos críticos de Dickens e Engels que E. Howard olha para metrópole, mas também através dos olhos dos utopistas da viragem do século como Charles Fourier, Robert Owen, Sir Titus Salt e Benjamin W. Richardson. A estes devemos acrescentar ainda as influências estetizantes e culturistas de John Ruskin e William Morris. Tal como não podemos deixar de parte o fortíssimo movimento higienista que influenciou o próprio urbanismo da época. O que têm todas estas correntes em comum? Cada uma delas, à sua maneira, ajudou a construir um discurso crítico anti-urbano. O programa das cidades-jardim, apesar de se ter estendido pelo século XX adentro e ter revivido um fôlego entre e após as Grandes Guerras (Lucey, 2007), é essencialmente um programa de fin de siècle, com um certo travo a pessimismo quanto à possibilidade da sociedade industrial ultrapassar as suas próprias contradições, mas também de um milenarismo reformista presente na convicção da capacidade de refundação da sociedade através da refundação do lugar.

Não é possível desvincular as propostas de E. Howard de uma crí­tica social às condições de vida precárias dos operários em Londres ou Manchester, as quais fazem da grande cidade uma espécie de súmula de todos os males da civilização industrial. Uma das reacções perante esta situação-limite foi justamente o processo de trânsfuga do socialismo utópico que numa tentativa de conciliar o potencial da tecnologia de produção industrial e o igualitarismo social propõe e ensaia modelos de sociedade alternativos, fundando comunidades cujo estilo de vida e organização económica e política são em tudo distintas do modelo da cidade existente. No entanto, o que estes utopistas propõem não é exactamente a refundação das cidades, mas a constituição de pequenas comunidades: a New Lanark de Robert Owen foi pensada para cerca de 1200 pessoas, Charles Fourier tinha em mente um número muito próximo de habitantes para os seus falanstérios e a vila operária do industrial Sir Titus Salt – Saltaire – não teria mais de 400 operários e suas famílias (Meneguello, 2001). Paralelamente, há que ter em consideração a presença do culto do arcaísmo e da ruína romântica preconizada por John Ruskin como símbolo de uma nostalgia pré-urbana muito popular à época, mas sobretudo a preponderância das projecções futuristas de William Morris que imagina na obra News from Nowhere (1891) a Londres do futuro como uma cidade-jardim. Num outro registo, o higienismo afirmou como a mais consistente e influente teoria reformista do espaço urbano. Desde do iluminismo que podemos falar de uma estratégia médico-espacial que procura prevenir surtos epidemiológicos através do desenho urbano, dando resposta à compreensão generalizada da cidade como foco de doença (aliás, a dicotomia urbano-rural é muito anterior ao século XIX, sendo possível encontrar representações da cidade como lugar de enfermidade física e moral em contraposição ao campo cujos habitantes são sempre representados como sendo saudáveis, robustos e “boa gente”). Contudo, é com o avanço da revolução industrial que as questões de saúde pública saltam para a opinião pública e se tornam num tópico político e cientí­fico incontornável. Por toda a Europa surgem, a partir da segunda metade do século XIX, sociedades profissionais que procuram influenciar os decisores políticos e os congressos multiplicam-se. Urbanismo e higienismo tornam-se sinónimos. A cidade é atacada por diversas frentes e de diversas formas. Se uns se contentavam em pedir a sua reforma, outros exigiam nada mais, nada menos do que o seu fim e o iní­cio de um mundo novo. Todos, no entanto, parecem compartilhar a crença no fracasso da cidade industrial.

Ebenezer Howard na proposta apresentada pela primeira vez em Tomorrow: A Peaceful Path to Real Reform (1898) incorpora esta desconfiança. Para ele, as cidades não são reformáveis, impondo-se a necessidade de criar uma nova forma de organização do espaço. É claro que as cidades-jardim não se reduzem a uma questão de reorganização do espaço, mas são antes uma tentativa de modificar a sociedade manipulando o espaço. E. Howard movimenta-se ainda na lógica dicotómica rural/urbano, os projectos de cidade jardim são produto do assombro perante a cidade de Dickens e recusa-a não apenas na sua forma material caótica, mas como também a recusa na sua forma moral e ideológica. Letchworth e Welwyn serão a um tempo propostas de remodelação urbana, social, económica, estética e higiénica da própria ideia de cidade, ou seja, o que propõe é uma terceira via entre o excesso de urbano resultante da revolução industrial e a memória mitificada de um mundo rural. É, no fundo, anti-urbano. Ou melhor: desurbano, na medida em que não propõe pura e simplesmente o retorno ao campo, mas a construção de um terceiro modo de habitar que incorpore o melhor dos dois mundos, uma espécie de diluição da densidade urbana ao longo de bosques e prados. Mas será ainda isto cidade?

Um aspecto interessante nas ideias de E. Howard é que estas conseguiram captar a atenção e simpatia do público em geral. Em pouco tempo, o anódino livro de Howard é republicado sob o título de Garden Cities of Tomorrow (1902) e em 1899 funda uma associação (Garden Cities Association) com o objectivo de promover e implementar o conceito de cidade-jardim. Não será preciso muito mais tempo para se gerar um movimento que ultrapassa as fronteiras do Reino Unido alastrando-se à Europa e depois ao resto do mundo. Em 1902 é fundada uma associação congénere à do Reino Unido, em 1903 é a vez da França e em 1906 da Bélgica. Em 1913 surge a International Garden Cities and Town Planning Association que agrupa representações de dezoito países (Pinol e Walter, 2003). Estes dados permitem-nos deduzir que o retraimento cultural perante a novidade da cidade industrial era generalizado, não se tratando de um fenómeno especificamente britânico.

As ideias de E. Howard encontraram um terreno fértil para a sua difusão na brecha civilizacional aberta pela revolução industrial. A colaboração com os arquitectos Raymond Unwin e Barry Parker no desenvolvimento do projecto Letchworth, a primeira cidade-jardim, não terá acontecido por mero acaso. Ambos são representativos de uma corrente conservadora e historicista da arquitectura, que procura recriar a arquitectura vernacular e rural. A Arts & Crafts, iniciado por Benjamin Ward Richardson sob a influência de John Ruskin, privilegia a habitação unifamiliar, construída com recurso a técnicas tradicionais, resultando daí objectos que esteticamente nos remetem para o imaginário medieval. Dificilmente se encontraria alguém tão capacitado para transpor para o terreno os diagramas de E. Howard. Sublinhe-se que se trata de uma estética arquitectónica contra-corrente, que renega em absoluto o ritmo na cidade emergente, sendo também expressão de uma ideologia anti-urbana. Recorde-se que por essa altura coexistem uma série de correntes vanguardistas que, ao contrário da Arts & Crafts, abraçam a urbanidade como novo paradigma como a Bahaus na Alemanha, o Futurismo italiano e a vanguarda russa. Quando, por exemplo, em 1915 Barry Parker apresenta o seu projecto para a futura Avenida dos Aliados no Porto, este é prontamente rejeitado pela intelectualidade local republicana que o considera indigno para o centro de uma grande cidade, criticando-o por querer reduzir o Porto à condição de aldeia. O dito projecto acabou por ser reformulado pelo arquitecto Marques da Silva que lhe conferiu a ostentação haussmaniana, mais de acordo com o que no entendimento e imaginário da população e dos políticos seria a praça principal de uma cidade moderna.

Para além da estética, as cidades-jardim propostas por E. Howard têm em comum um conjunto de princípios: a) fixação do número máximo de habitantes (32 mil, dos quais 2 mil agricultores); b) delimitação da área urbanizada (no caso de Welwyn estabelece uma cintura verde que circunscreve o povoado); c) zona central constituída por um jardim e omnipresença de espaços verdes; d) hierarquização do espaço urbano através de um sistema de avenidas e ruas; e) um sistema económico-social de co-responsabilização da manutenção das áreas comuns; f) zoning de funções habitacionais, comerciais e industriais; g) preferência pelo arrendamento em detrimento da posse dos lotes; h) ligação à via-férrea; i) exclusividade das unidades habitacionais unifamiliares e j) capacidade ampliação em rede da urbanização.

Estes preceitos exigem obrigatoriamente um planeamento e gestão centralizados. Não há jardim sem jardineiro. Por detrás da crí­tica social e política, é possível descortinar uma postura conservadora e anti-liberal. Afinal de contas quem seriam os eleitos para habitar as cidades-jardim? É fácil perceber que esta reorganização do espaço privilegia uns em detrimento de outros. Uma cidade com lotação, é uma cidade exclusiva. Apesar de E. Howard ter imaginado as suas cidades-jardim como comunidades auto-suficientes e inclusivas, a verdade é que o resultado foi o de se transformarem num subúrbio habitado sobretudo pelas classes favorecidas, um processo a que hoje chamaríamos de gentrificação. Uma das consequências das cidades-jardim é justamente o nivelamento social por exclusão. Possivelmente, não foi por acaso que este modelo de “urbanização” tenha recebido especial atenção por parte de alguma intelectualidade alemã nacional-socialista, onde aparece associada ao conceito de higienismo racial (Pinol e Walter, 2003), tal como podemos falar de um Estado Novo português que a dado momento opta por uma linha anti-urbana que enfatiza um certo ruralismo conceptualmente construído em torno de modelos arquitectónicos pseudo-tradicionais (a “típica” casa portuguesa) e do elogio das virtudes rurais em oposição à vida urbana.

Talvez seja demasiada responsabilidade a que se pretende imputar aqui a E. Howard e à sua visão ingénua da cidade do futuro. Mas a verdade é que E. Howard parece ter sido incapaz de pensar a cidade para além da dicotomia clássica rural-urbano, pretendendo corrigir a urbanidade através de uma ruralidade construída e intelectualizada e, portanto, ela própria urbana. E. Howard, no fundo, nunca terá saído da cidade da industrial.

BIBLIOGRAFIA
Howard, Ebenezer (1965), "Garden Cities of Tomorrow". s/l: Forgotten Books. E-Book disponível em: http://books.google.pt/books?id=ujzvUyqvGCoC
Lucey, Norman (2007), "The Effect of Sir Ebenezer Howard and the Garden City Movement on Twentieth Century Town Planning". Página consultada a 5 de Abril de 2009, disponível em: http://www.rickmansworthherts.freeserve.co.uk/howard1.htm
Meneguello, Cristina (2001), "A cidade industrial e o seu reverso: as comunidades utópicas da Inglaterra vitoriana". História: Questões & Debates, Curitina, nº 35, p. 179-210. Página consultada a 4 de Abril de 2009, disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/viewFile/2679/2216
Pelletier, Jean e Delfante, Charles (2000), "Cidades e urbanismo no mundo". Lisboa: Instituto Piaget
Pinol, Jean-Luc e Walter, François (2003), "La ville contemporaine jusqu'à  la Seconde Guerre mondiale", in Jean-Luc Pinol (Dir.), Histoire de l'Europe urbaine II: de l'Ancien Régime à nos jours.Paris: Seuil, 11-271
Esta entrada foi publicada em 5. História Urbana, 6. Sociologia Urbana com as etiquetas , . ligação permanente.

2 respostas a A cidade(?) jardim

  1. Pingback: Conexão

  2. Pingback: Ecos da Cidade-Jardim « Urbscape

Deixe um comentário